À procura da verdade do próprio ser
de ENZO BIANCHI
A conversão, não acontece nem se esgota num só momento, mas é um dinamismo que deve ser renovado nos diversos momentos da existência, nas diversas idades
9 Março 2011
Quarta feira de cinzas
Todos os anos a Quaresma volta. Um tempo cheio, de quarenta dias, para ser vivido da parte de todos os cristãos como um tempo de conversão, de voltar para Deus. Os cristãos vivem lutando contra os ídolos sedutores; é pois sempre favorável um tempo para acolher a graça e a misericórdia do Senhor, contudo, a Igreja - que na sua inteligência conhece a incapacidade da nossa humanidade em viver sem fortes tensões o caminho quotidiano em direcção ao Reino - pede que seja um tempo preciso de destaque do quotidiano, um "outro" tempo, um tempo forte para fazer convergir no esforço de conversão a maior parte das energias que cada um possui. E a Igreja pede que isto seja vivido simultaneamente por todos os cristãos, isto é, que seja um esforço feito por todos em conjunto, em comunhão e em solidariedade. São, portanto, quarenta dias, para voltar para Deus, para repudiar os ídolos sedutores e alienantes, para um maior conhecimento da misericórdia infinita do Senhor.
A conversão, não acontece nem se esgota num só momento, mas é um dinamismo que deve ser renovado nos diversos momentos da existência, nas diversas idades, sobretudo quando o passar do tempo pode induzir no cristão uma certa acomodação à mundanidade, um cansaço, uma perda do sentido e do fim da própria vocação que o podem levar a viver a fé de uma forma esquizofrénica. Sim, a quaresma é um tempo de reencontro da própria verdade e autenticidade, antes mesmo de ser um tempo de penitência. Não é um tempo para fazer uma particular obra de caridade ou de mortificação, mas é o tempo para reencontrar a verdade do próprio ser. Jesús afirma que também os hipócritas jejuam, também os hipócritas fazem obras de caridade (cf. Mt 6,1-6.16-18): por isso mesmo é preciso unificar a vida diante de Deus e ordenar o fim e os meios da vida cristã, sem os confundir.
A quaresma pretende reactualizar os quarenta anos de deserto de Israel, guiando o crente ao conhecimento de si, isto é, ao conhecimento daquilo que o Senhor, de quem crê, já conhece: conhecimento que não é feito de introspecção psicológica mas que encontra luz e orientação na Palavra de Deus. Como Cristo que por quarenta dias combateu e venceu, no deserto, o tentador, graças à força da Palavra de Deus (cf. Mt 4,1-11), assim o cristão é chamado a ouvir, a ler e a rezar mais intensa e assiduamente -na solidão como na liturgia- a palavra de Deus contida nas Escrituras. A luta de Cristo no deserto, torna-se assim exemplar e lutando contra os ídolos o cristão deixa de fazer o mal que está habituado a fazer e começa a fazer o bem que não faz! Emerge assim a "diferença cristã", aquilo que constitui o cristão e que o torna eloquente na companhia dos Homens; que o habilita a mostrar o evangelho vivido, feito carne e vida.
A quarta feira de cinzas assinala o início deste tempo propício da quaresma e é caracterizado, como o nome indica, pela imposição das cinzas sobre a cabeça de cada cristão. Um gesto que, talvez hoje, não seja compreendido mas que, explicado e interiorizado, pode ser mais eficaz que as palavras, na transmissão da verdade. As cinzas são o resultado do fogo que arde, contêm o simbolo da purificação, constituem uma memória da condição do nosso corpo que, depois da morte, se decompõe e se transforma em pó; como uma árvore frondosa que, depois de abatida e queimada, se transforma em cinzas, assim sucede ao nosso corpo quando volta para a terra, contudo, aquelas cinzas têm um destino: a ressurreição.
Simbolismo rico o das cinzas, conhecido já no Antigo Testamento e na oração dos Hebreus: "cobrir-se" de cinzas é sinal de penitência, de vontade de mudança pela provação, pelo fogo purificador. É certo que é apenas um sinal, mas quer indicar um acontecimento espiritual autêntico vivido no quotidiano do cristão: a conversão e o arrependimento do coração contrito. Mas mesmo esta sua qualidade de sinal, de gesto, pode, se vivido com convicção e com a invocação do Espírito Santo, impregnar o corpo, o coração e o espírito, favorecendo a conversão.
Em tempos, no rito da imposição das cinzas, recordava-se ao cristão, antes de mais, a sua condição de homem saído da terra e que à terra tornará, segundo a Palavra de Deus dita a Adão pecador (cf. Gn. 3,19). Hoje o rito tem um significado acrescido. A palavra que acompanha o gesto pode também ser o convite feito por João Baptista e por Jesús no início das suas pregações: "Converte-te e acredita no Evangelho"...sim, receber as cinzas significa tomar consciência que o fogo do amor de Deus consome o nosso pecado; acolher as cinzas nas nossas mãos significa perceber que o peso dos nossos pecados, consumidos pela misericórdia de Deus, é ligeiro; acolher as cinzas significa confirmar a nossa fé pascal. Seremos cinzas, mas destinadas à ressurreição. Sim, na nossa Páscoa a nossa carne ressurgirá e a misericórdia de Deus, como fogo, consumirá na morte, os nossos pecados.
Vivendo a quarta feira de cinzas, os cristãos não fazem mais do que reafirmar a sua fé de serem reconciliados com Deus em Cristo; a sua esperança de serem um dia ressuscitados com Cristo para a vida eterna, a sua infinita vocação à caridade. O dia das cinzas é o anúncio da Páscoa de cada um de nós.
Enzo Bianchi
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