Carta aos amigos - Advento 2015

Cinquenta anos

Caros amigos e hóspedes que nos acompanhais desde longe,

Que podemos dizer-vos nestes dias em que se assinalam os cinquenta anos do encerramento do concílio Vaticano II e do início da nossa história aqui, em Bose?
Pelo Concílio, não temos outro sentimento senão a gratidão ao Senhor pelo dom que fez à Igreja e ao mundo através deste acontecimento cujo protagonista foi o Espírito Santo. Graças a esse evento, emergiram duas orientações fundamentais do Evangelho: a comunhão visível entre todos os cristãos baptizados no nome do Senhor Jesus e a escuta de toda a humanidade, inclusive a não cristã, comprometida com outros itinerários de espiritualidade ou num caminho de humanização inspirado pela consciência. Esta foi a mudança concreta e autêntica da forma de estar da Igreja na história do mundo. E devemos a este evento que tenha sido possível o nosso caminho monástico ecuménico em Bose.

Sobre este último, não tenho nenhuma certeza, a não ser que também ele precisa da misericórdia do Senhor! Por tal motivo, não fazemos nenhuma comemoração nem festa alguma. Não porque pretendemos ser diferentes dos outros, mas porque colocamos nas mãos do Senhor o caminho percorrido e dizemos-Lhe e repetimos-Lhe cada dia “Kyrie, eleison!”. Nunca quisemos “dar testemunho”, aqui ou acolá, e ainda menos em Bose. Queremos apenas testemunhar Cristo, o único Senhor que reconhecemos, enquanto para nós pedimos apenas a vossa oração e, ao Senhor, a Sua misericórdia.

Não sabemos dizer se o nosso percurso foi vontade do Senhor: esperamos que sim. Não sabemos dizer se fazemos o bem ou somos obstáculo ao Senhor: no dia do juízo, será o próprio Senhor a dizê-lo. Não sabemos se a cada um de nós será concedido ser chamado bem-aventurado ou bendito, mas tentámos cumprir humanamente aquilo que nos parecia humano e que não estava em contradição com a palavra de Deus que procurávamos e que nos parecia encontrar cada dia na escuta das Sagradas Escrituras.

No centro de toda a nossa existência está o Senhor Jesus, este homem que nos ensinou a viver neste mundo, este homem que passou fazendo o bem, este homem que era extraordinário porque “humaníssimo”, este homem que anunciava Deus com a sua carne, a sua vida, a sua palavra. Ele era e é Deus, palavra realmente ambígua, mas que para nós significa a verdade, a eternidade, aquilo que nos precede, que nos acompanha, que vem connosco aqui e para além da nossa morte. Sim, nós O amamos sem O termos visto e, sem O termos visto, acreditamos n'Ele que dá sentido às nossas vidas, sempre incompletas em cada relação vivida: com os homens e mulheres que encontramos e com Ele, em quem se encontra toda a humanidade e toda a divindade.

Quando fazemos memória d'Ele, quando O invocamos, quando, às vezes, temos a ousadia de dizer que vivemos com Ele, brota dos nossos lábios a simplicidade do “Kyrie, eleison! Senhor, tem misericórdia de nós!”. E queremos pronunciar estas palavras sendo a voz a quantos não conseguem exprimi-las, esmagados pelo sofrimento e pelo mal e pelo pecado, homens e mulheres que se cansam no esforço de viver e esperar, pobres porque necessitados, últimos, anónimos, não reconhecidos. “Senhor, tem misericórdia de nós!”. Mas queremos também dar voz às árvores que estão ao nosso lado, sussurrando ao sopro do vento, aos animais que choram e cantam, às pedras imóveis cuja única vocação é permanecer aí onde estão.

Queridos amigos, para nós esta é a vocação que esperamos ter realizado quando pedirmos que nos depositem sobre a terra nua para fazer o êxodo deste mundo para a vida, para sempre, para continuar juntos como temos estado aqui, no amor, na amizade, na surpreendente aventura do encontro…

Orai por nós para que não demos escândalo a ninguém e ninguém possa dizer que lhe mostramos indiferença. Orai por nós para que possamos ser libertos da “grande tentação”. Nós oramos por vós.

Fr. Enzo Bianchi, prior de Bose

Bose, 8 de Dezembro de 2015
50° Anivers
ário do encerramento do Concílio Vaticano II
e
do início da vida em Bose.

 

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